Livro: A Metade Perdida
Título Original: The Vanishing Half
Autora: Brit Bennett
Tradução: Thaís Britto
Editora: Intrínseca
Quando Jude Winston leva o namorado para a biblioteca de sua universidade a fim de prová-lo que sua cidade natal não existia no mapa, ele fica surpreso, é claro, como pode uma cidade não existir nos atlas? Mallard realmente não existe, mas na ficção de Brit Bennett, o pequeno vilarejo localizado no estado da Luisiana não é tão difícil de ser localizável na realidade.
"Era uma cidade estranha. (...) Como qualquer outra, aquela cidade era mais uma ideia do que um lugar. A ideia ocorreu a Alphonse Decuir, em 1848, quando estava nos campos de cana-de-açúcar que herdara do pai. (...) Uma cidade para homens como ele, que nunca seriam aceitos como brancos, mas que se recusavam a ser tratados como negros. Um terceiro lugar. A mãe de Alphonse, que Deus a tenha, odiava a pele clara do filho; quando ele era criança, ela o colocava debaixo do sol, rezando para que escurecesse. Talvez aquela tenha sido a inspiração dele para sonhar com a cidade. A pele clara, como tudo que é conquistado a duras penas, era uma dádiva solitária." (pág. 13)*
O mote de construção para a cidade é o fio condutor da narrativa, aquilo que irá definir e motivar todas as ações dos personagens, especialmente das gêmeas Desiree e Stella Vignes, nascidas em 1938 e tataranetas do fundador Alphonse. Desiree é a mais intempestiva e inquieta, seu maior sonho é sair da cidade, diferente da irmã, que parece mais subserviente e adaptada ao papel que lhe cabe, mesmo quando a mãe subitamente tira as filhas da escola porque precisam começar a trabalhar. Stella, que gostava muito de estudar e cujo sonho era ingressar na universidade, aceita melancólica que ela e a irmã passem a trabalhar faxinando a casa de um casal de brancos.
Até que finalmente Stella, aos 16 anos aceita embarcar no sonho da irmã e elas partem rumo a Nova Orleans, quando, anos depois, seus caminhos tomam rumos inesperadamente opostos. Para surpresa de Desiree (e do leitor), Stella empreende uma segunda fuga, dessa vez da própria irmã, que sozinha e desamparada, casa-se com Sam e dá a luz a Jude. Talvez desafiando a própria ascendência racista, Sam é um homem negro "muito escuro" e Jude puxa mais ao pai que a mãe. Por isso, quando retorna a Mallard, 14 anos depois, Desiree choca a cidade mais pela sua filha de pele escura do que pelo seu retorno.
Em 1968, quando Desiree volta a Mallard, quatro anos haviam se passado desde a promulgação da Lei dos Direitos Civis, quando todas as leis de segregação racial ainda vigentes (como instalações separadas para brancos e negros, por exemplo) são erradicadas. Esta lei foi fruto de muitas lutas, encabeçadas pelo pastor Martin Luther King, assassinado neste mesmo ano de 1968. Assim, o final dos anos 60 e anos 70 são marcadas por mudanças políticas e culturais profundas, ainda que somente na letra fria da lei. Essas questões ficam nítidas quando acompanhamos o que afinal aconteceu com Stella e porque ela fugiu. (ATENÇÃO: SPOILERS A PARTIR DAQUI)
Na primeira parte do livro, o narrador nos leva a crer que Stella é uma menina sem muito a dizer, por isso o protagonismo de Desiree, entretanto, ao chegarmos na parte III, vemos que Mallard produziu efeitos opostos na personalidade dela, em comparação com a irmã. Enquanto Desiree queria se afastar o máximo possível dessa determinação racista da suposta superioridade por ter a pele mais clara, Stella caminha no sentido oposto, ela se torna branca e usufrui de todos os privilégios a que ela nunca sonhou ter o direito quando adolescente.
Seu processo de tornar-se branca começa quando vai fazer uma entrevista para um emprego como secretária. Stella sabe que nunca seria contratada sendo negra, mas a entrevistadora a confunde, não percebe que é negra e ela não a corrige. Ao ser contratada, ela conhece o seu futuro marido, o seu chefe Blake Sanders, um homem rico e branco, claro. Stella, que ainda morava com a irmã quando começa a sair com o chefe, esconde a sua história desde o início do romance, para Blake, toda sua família morreu quando era pequena. Nesta narrativa, não havia espaço para a irmã, por isso Stella foge, casa-se com Blake, com quem vai morar em um condomínio em Los Angeles e tem uma filha, Kennedy.
Toda a vida adulta de Stella é um simulacro de como o racismo pode operar na vida de uma pessoa. Os privilégios e as facilidades de ser uma pessoa branca levam a personagem a abandonar a si própria, sua história e as pessoas que ama. Ao mesmo tempo que sentimos compaixão por Desiree, desesperada sem saber da irmã e em luto pela sua perda em vida, é difícil julgar Stella, ainda que ela tome cada vez mais atitudes questionáveis como opor-se firmemente a mudança de uma família negra para o condomínio onde mora, fazendo justificativas racistas, quando o que sente na verdade é medo de ser "reconhecida" por um dos "seus". É interessante como percebemos que seu medo na verdade é muito mais de se "revelar" ao outro, pois ela é a única condômina que acaba desenvolvendo uma amizade com Loretta Walker, a vizinha negra de quem queria distância e de quem acaba vendo semelhanças com Desiree. É evidente o quanto toda a mentira que vive paga um alto preço, além de viver a sombra, com medo de ser "desmascarada", Stella sente o tempo todo que não pode ser ela mesma, se torna cada vez mais contida e a relação com sua filha é permeada por estranhamentos, ela tem dificuldade em reconhecer Kennedy como a própria filha, essa menina branca de olhos claros. Os capítulos sobre Stella são pra mim os mais complexos e os que me fizeram refletir mais sobre racismo e identidade.
A prole dessas duas mulheres também desempenham funções importantes para história. Jude, a menina negra que consegue se formar em medicina e tem um namorado transexual e Kennedy, a menina branca que sonha em ser atriz, mas tem seus sonhos constantemente frustrados, ainda que seja rica, branca e linda. As histórias dessas quatro protagonistas nos fazem pensar muito sobre pertencimento e identidade. A filha da mulher que mente sobre seu passado e sua própria vida se torna uma atriz, que sente prazer em performar outras vidas, em ser, a cada papel, uma pessoa diferente. A mulher cujo sonho era se distanciar ao máximo de suas raízes, retorna a sua cidade anos depois e suas raízes ficam cada vez mais profundas, somente se permitindo ir embora após a morte da mãe, vinte anos depois. Jude, que foi vítima de todos as violências racistas em Mallard, quando criança, se torna uma mulher confiante, a segunda mulher de sua família a ter diploma, seguida de Stella, que apesar de ter sido negada os estudos quando nova, chega a universidade e se torna professora de estatística, a despeito dos protestos machistas do marido.
Mallard é a cidade fictícia representada por Brit Bennett em seu livro A Metade Perdida, mas é também toda a sociedade racista americana, toda a sua história de segregação racial e luta por direitos iguais, seus personagens são representações de uma cultura perversa que anula uma história em detrimento da outra, que produz violências físicas e subjetivas irreparáveis. No Brasil, esta violência se produziu de outra forma, talvez mais implacável porque sutil e camuflada nas entrelinhas de um "jeitinho brasileiro", mas ainda assim, este livro (e talvez todo livro que traga o tema do racismo) serve também para pensar o racismo à brasileira, enquanto apagamento da identidade do povo negro, o processo de tornar-se branca de Stella talvez não seja tão distante assim no tempo e no espaço. Mallard está em todos os lugares.
*edição do clube de assinatura Intrínsecos.
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